Eu percebi que não quero mais escrever
Pelo menos não do jeito como estou escrevendo hoje...
Eu sempre escrevi.
Fui uma criança imaginativa, que inventava mil histórias e que, antes mesmo de aprender as primeiras letras, reunia os coleguinhas para ler gibis em voz alta.
Com a adolescência, a escrita se tornou parte integral de mim. Escrevi fanfics, contos, novelas, romances, poemas e tudo o que você pode imaginar.
Sendo assim, eu sempre escrevi. De uma forma ou de outra.
Mas no início desse ano, algo mudou dentro de mim. De repente, toda a vontade de escrever sumiu. Como se alguém tivesse agitado uma varinha de condão e, com isso, drenado o menor ímpeto de abrir um caderno, um app e escrever.
Não sei ao certo o que desencadeou o processo. Certo dia, abri o documento de Os Doze Pretendentes, já no penúltimo capítulo, e encarei a tela sem vontade. Resignada, fui fazer outra coisa. Sei abraçar os momentos de inércia do processo, então não dei bola. A vontade, pensei então, sempre volta.
Mas não voltou. Um dia que virou três, quatro, um dia que se transformou em uma semana, em duas, em três. A vontade, ao contrário de tudo o que já acontecera, parecia diminuir.
Eu não queria mais escrever.
Antes que os escritores que me leem apontem para o temido bloqueio criativo, já descarto a ideia. Não acredito em bloqueios, mas em vontades. Eu preferia fazer qualquer outra coisa do que escrever porque, quando observei com mais atenção, a ação parecia ter perdido todo o sentido.
Me senti como Sísifo, mas diferente.
Você deve conhecer a história mitológica, mas não custa relembrar: Sísifo, rei de Corinto, é amaldiçoado por um deus depois de cometer atos impuros. A pena? Empurrar morro acima, por toda a eternidade, uma pedra de proporções assustadoras para, quando estiver próximo de concluir a tarefa, vê-la rolar morro abaixo e ser forçado a recomeçar o processo.
Sempre me senti como Sísifo diante da tarefa laboriosa de escrever livros. Ao longo dos anos, empurrei a pedra — as narrativas, os livros — com todas as forças que possuía. Eu queria vê-la chegar ao topo, ao ponto mais alto do final para, uma vez lá, ter o prazer de vê-la rolar morro abaixo e ter de recomeçar a tarefa.
Eu fui um Sísifo feliz. Albert Camus, aposto, estaria orgulhoso de mim.
No entanto, algo diferente aconteceu desta vez. Rolei a pedra morro acima por dois ou três anos — não me recordo ao certo quando comecei o processo de escrita de Os Doze Pretendentes, mas vá lá — e, quando cheguei ao topo, a pedra não rolou morro abaixo. Ficou ali, presa numa das ranhuras da elevação, se recusando a descer. Diante da oportunidade, espiei o que tinha para lá do cume.
E gostei do vale que vi, da bruma misteriosa que cobria o chão, dos outros picos esperando por mim. Quando a pedra ameaçou rolar morro abaixo, na mesma direção de sempre, não permiti.
Depois de admirar o vale mais um pouquinho, empurrei a pedra para a frente e rolei junto com ela.
Ainda não sei o que esperar desse ato de coragem, mas estou confiante.
Afinal, como diz um dos meus lemas preferidos em latim:
Audentes fortuna iuvat.
A sorte favorece os audaciosos. E nesse momento, mais do que nunca, espero que isso seja verdade.
Ok, mas qual a causa real disso? O que muda?
Sendo bem sincera: não sei, mas desconfio.
Escrever é uma atividade complexa. É daquelas coisas na vida que não são nem fáceis, nem difíceis. Logo, complexidade pura.
Mas existe algo sobre ser um escritor que me incomoda.
Numa das primeiras atividades da graduação em Escrita Criativa, tivemos de fazer um manifesto pessoal sobre a nossa arte. Sobre o que acreditávamos, o que defendíamos e como gostaríamos de ser percebidos.
O texto na íntegra, feliz ou infelizmente, foi perdido. Mas era curto, direto ao ponto, prezava pela clareza acima de tudo, e no final, eu fazia um apelo aos colegas: não me chamem de escritora.
Algo sobre o título sempre me incomodou. Para mim, escrever, o verbo, é uma coisa. Escritor, o substantivo, é outra. Nunca consegui conciliar as duas.
Recentemente, quando reativei o meu Instagram, eu queria ser escritora. Queria demais. Inclusive, uma amiga que entende pra caramba do assunto me ajudou, mas logo me cansei. Em certo ponto, comecei a pensar mais no lançamento, no próximo vídeo e no próximo carrossel do que na escrita em si.
Inclusive, vou além: só o pensamento de sentar e escrever parecia uma perda de tempo. Por que eu vou insistir num ato sem sentido, que não me trazia mais a mínima alegria? Depois, comecei a questionar processos, escolhas, todas as coisas que já escrevi e o que viria a escrever no futuro.
Odiei tudo, e com tanta força, que cheguei ao ponto de dizer para a minha revisora e para as minhas amigas que Os Doze Pretendentes seria o meu último livro. Eu precisava de um rompimento total e definitivo. Eu queria, mais do que tudo, sair de cena.
E quando a gente começa a ficar assim, é preciso puxar o freio de mão e dar o famoso cavalinho de pau.
Mesmo sem um pingo de vontade, sentei e escrevi. O primeiro parágrafo me causou dor física. No segundo, tive a sensação de usar os sapatos de outra pessoa, uma que calça pelo menos três números abaixo do meu.
Mas a partir do terceiro parágrafo, tudo fluiu. Resultado: em pouco mais de três horas, terminei o penúltimo capítulo do livro e engatei o último na sequência.
E percebi que a causa do problema não é a escrita, mas a expectativa que a minha persona de escritora coloca sobre o ato, sobre a produção, sobre o que os leitores podem ou não esperar de mim. O problema nunca é o processo, e sim o que faço com a conclusão dele. Com o que vem depois.
Precisei desse mês para perceber e assumir, de uma vez por todas, que não sirvo para ser escritora nos dias de hoje. Não quero fazer vídeos sobre a minha vida, sobre os livros que leio e sobre as histórias que escrevo, a não ser durante o lançamento. Não quero me tornar uma influencer que, por um acaso, escreve livros. Não quero ser escritora, mas sim escrever.
Assumo, de peito aberto, a skin de ermitã: se eu tiver algum lançamento planejado, vocês vão ouvir falar sobre mim. Se eu não tiver nada para ser publicado, aceito aparecer nos stories de amigos ou em algum dump aleatório, como uma assombração digital que se perdeu no caminho.
Quem escreve precisa de solidão e de reflexão. O mercado quer nos convencer da importância de ser um escritor-barra-criador-de-conteúdo, de como é vital saber aparecer, da necessidade imperativa de ter mais leitores, mais seguidores, mais, mais, mais. Não é isso o que define qualidade, disciplina e amor pelo ofício. Isso, como sempre, é supérfluo.
Entre ser escritora e continuar escrevendo, fico com a segunda opção.
Mas e o Cafezinho? Como fica?
Primeiro de tudo, peço desculpas pelo sumiço. Como eu disse no início desse artigo, precisei rolar a pedra para a frente, para o vale do desconhecido, antes de vir aqui compartilhar a minha decisão com você.
Sobre as mudanças no Cafezinho: não teremos. Esse espaço, um dos meus projetos mais queridos, sempre foi visto por mim como um lugar de resistência aos algoritmos e aos vídeos de humor sem graça que dominaram o meio literário nos últimos anos.
Para não dizer que nada vai mudar, você pode esperar mais artigos sobre leitura e escrita, e menos dicas prontas. Espere mais reflexões sobre esses temas, mais ensaios, e menos formatos prontos.
É. Escolhi 2025 para ser profunda. Acontece.
Mais uma vez, agradeço a sua paciência e a sua compreensão. Prometo que voltaremos à programação normal em março, ok?
Finalizo esse artigo extremamente longo com uma música que não saiu dos meus ouvidos, e que me acompanhou nesse momento de introspecção:
Desejo a você um bom Carnaval.
Até a próxima! 🎉
Acredito muito nisso, Rach! Tudo envolve tanto movimento, tanta criação de conteúdo, que esquecemos do conteúdo em si. Uma coisa que as newsletters garantem que nenhuma outra rede consegue é a sensação de comunidade. De uma ligação real. Acho que você nunca parou de escrever, vendo esse texto lindo. Feliz que esse espaço continua!