Por que não classifico mais os livros que leio?
Talvez seja uma boa hora pra você fazer o mesmo...
Anteriormente, nessa mesma newsletter, falei sobre como tomei a curiosa decisão de ler menos. Se antes eu buscava ler mais de trinta livros por ano — uma meta ousada pra uma leitora lenta como eu —, hoje eu sequer penso nisso. Na verdade, escrevo esse texto pra anunciar mais uma das minhas desistências.
Mas antes, um pequeno retrocesso.
Hoje, somos cercados por apps. Se queremos tomar mais água, baixamos um app que vai nos lembrar a cada minuto dessa necessidade. Precisamos organizar a rotina ou as finanças? Sem problemas, existem apps incríveis pra isso. Queremos formar um hábito, estudar uma língua, contabilizar quantas palavras escrevemos por dia ou mesmo quantos passos demos na semana? Lá vamos nós pra loja de aplicativos.
Por quê? É simples: a raça humana adora coletar dados sobre os próprios progressos. Ver os números de qualquer atividade que nos propomos a fazer crescerem nos dá um prazer esquisito. Em suma, os apps traduzem o irreal em algo concreto, mensurável.
Bora puxar a brasa pra nossa sardinha: hoje, como você mensura as suas leituras? Se for por apps, como você estabelece que a classificação de um livro é duas, três ou cinco estrelas? Aliás, um tópico sensível pra comunidade: três estrelas é bom ou ruim?
Depois de pensar, decidi desistir do Goodreads e de todos os outros apps de classificação de leitura. E acho que você deveria fazer o mesmo.
Antes que a população do booktok venha com tochas e ancinhos até a minha casa, explico:
A leitura não é um processo linear
Desde o momento em que você se levanta, até a hora de fechar os olhos pra dormir, você toma milhares de decisões por dia: essa ou aquela blusa, pegar ou não determinado ônibus, curtir um post, escovar os dentes e assim por diante.
Quando você decide ler um livro, isso também é fruto de milhares de decisões que você tomou pra chegar até esse momento. Escolher o último livro da Colleen Hoover ou o Manifesto do Partido Comunista depende de milhares de coisinhas do seu dia ou até mesmo da sua vida. Até aí, aparentemente tudo linear.
Mas seja qual livro você escolher, a leitura não é algo linear porque as histórias tendem a nos acompanhar de diversas formas.
Aí vá um exemplo que talvez você se identifique: imagine que você está lendo um livro muito bom. Tão bom que obriga você a colocar itálicos no advérbio de intensidade. Você passa noites e noites na companhia do tal livro. Você vai e volta nos parágrafos, relê as frases, pensa nelas ao longo do dia, fica curioso pra saber como tudo vai terminar, dá uma folheada ansiosa pra espiar o que aguarda você, marca suas passagens preferidas — no livro ou em outro lugar — até que a história termina e fica um vazio dentro de você durante dias, semanas. Tudo lembra o tal livro, a tal história.
Se identificou? Agora imagine um livro ruim, enfadonho. Você não gosta dos personagens e da história, mas se força a ler. Você avança com rapidez, pula alguns parágrafos insuportáveis, fecha o livro, deixa-o de lado. Mas ele fica ali, encarando você, esperando. Nada é tão paciente quanto um livro ruim. Você pega a porcaria do livro, abre, folheia as páginas. Lê uns capítulos adiante, volta. Talvez até leia o final pra ver se vale mesmo a pena seguir em frente. Até que você termina, enfia o livro na gaveta e nunca mais se lembra dele. Ou, na pior das hipóteses, ele volta pra assombrar você.
Agora, pergunto: como podemos dizer que a leitura é algo linear quando você passa por tantas mudanças entre a primeira e a última página? Se engana quem acha que ler é passar ileso por tudo.
O que nos leva a outro ponto interessante: nos dois cenários que citamos, no livro incrível e naquele nem tão bom assim, existem momentos. Talvez durante a leitura do livro perfeito algumas passagens tenham ficado arrastadas, meio chatas. Já na do livro ruim, você passou por momentos nos quais a narrativa decolou inesperadamente, momentos nos quais você pensou: agora tudo vai engrenar.
Mas o que tudo isso quer dizer? É simples: existe o bom no ruim, e o ruim no bom. E sendo a leitura uma forma de arte, e esse texto um jeito de convencer você a abandonar apps de classificação de leitura, trago meu outro ponto:
Classificar um livro é algo bizarro
Desde os primórdios, gostamos de classificar aquilo que vemos em bom ou ruim. Aliás, se a gente parar pra pensar, a maioria dos setores tem uma forma objetiva de avaliar os próprios produtos: o Guia Michelin, que avalia restaurantes do mundo todo, Rotten Tomatoes, IMDB e Letterboxd pro cinema e pras séries, o Metacritic pros games e por aí vai.
Eis que chegamos na literatura. Hoje, apps como Skoob, Goodreads e tantos outros fazem esse papel. Quantas estrelas é o livro que você tá lendo agora? Duas, três? Ou talvez cinco estrelas e um favoritado? Pra você, três estrelas é bom ou ruim?
Insisto nas perguntas porque me questiono, sempre que abro esses apps, como é possível classificar um livro, algo tão subjetivo, em rankings objetivos.
Voltemos ao exemplo dos livro: como classifico um livro, uma ideia que apesar da aparente linearidade é não linear, em estrelas? O melhor exemplo concreto que posso dar é esse: quem acompanha o Cafezinho durante um tempo, sabe que tenho uma quedinha por filosofia antiga e, principalmente, pela vertente estoica, o que rende algumas citações a Marco Aurélio, Sêneca e a todo o resto do bonde. Mas a primeira vez em que li Meditações, do imperador romano Marco Aurélio, eu achei chato, embolado. A edição era uma tradução bilíngue — grego-português —, mas as frases não faziam sentido pra mim. Fiquei triste porque tinha ido com muita expectativa. Abri o Goodreads e, com dor no coração, dei o veredicto: duas estrelas.
Avanço dois anos, ainda com essa questão: por que não gostei de um livro que me parecia tão conectado com a minha forma de pensar? Decidi reler, mas em outra edição, em outro idioma. E um mundo novo se abriu. Quando reli Meditações em inglês — nessa edição que na época estava numa promoção imperdível —, traduzido por um professor de literatura clássica direto do grego, tudo ficou claro. Eu entendi o livro, as ideias. Cinco estrelas, favoritado.
Você provavelmente já viu aonde quero chegar: uma centena de fatores pode influenciar a sua leitura e, por extensão, a sua classificação. Às vezes, o problema é a edição, o idioma ou até mesmo você. O livro certo, no momento certo é um sonho. Mas o livro certo no momento errado é uma tristeza sem fim.
Por isso, insisto: classificar algo tão múltiplo quanto a literatura — e a sua própria experiência de leitura — numa quantidade de estrelas é abrir mão das nuances do senso crítico, da multiplicidade de uma narrativa ou texto teórico, em favor de um pensamento que se resume a será-que-esse-livro-é-três-estrelas-ou-três-estrelas-e-meia?
Aliás, a única forma de arte que parece ter passado ilesa por essa febre da classificação foram as artes plásticas. E dá pra imaginar o motivo. É impossível você parar diante da Mona Lisa, no Louvre, olhar bem pra ela, dar um suspiro e dizer: “é, acho que pra mim é duas estrelas. Talvez três. Valeu a tentativa, da Vinci.”
E é por isso que vou abandonar Goodreads como leitora. Quero parar na frente da Mona Lisa e olhar pra ela sem ter a pressão de classificar, de quantificar o que não pode ser quantificado. Quero olhar pra ela, entender, sentir o que eu tiver de sentir e ficar em paz com isso.
Tá, mas qual é a solução?
Vivemos num mundo conectado. e negar a realidade é dar às costas ao problema. Em algum momento, você, amante dos livros, vai querer compartilhar a sua opinião com o mundo. Pode ser até que você me ache meio sem noção por desistir do Goodreads. E tá tudo bem.
Mas pensando nisso, criei uma listinha de coisas que você pode fazer depois de terminar uma leitura, sem se prender a classificações e a outros rankings que não agregam em nada:
Escreva sobre a leitura na sua rede social preferida
Crie um banco de leitura pessoal — tipo o meu!
Grave um vídeo falando sobre ela
Envie áudios longos pros seus amigos no WhatsApp
Mantenha diários de leitura — físicos ou digitais
Anote seus pensamentos no livro mesmo — ou num bloco de notas
E, principalmente, entenda que nem tudo na vida precisa de uma classificação.
Eu, a Mona Lisa e as suas futuras leituras agradecem.
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