Lições de escrita que aprendi com Shrek
O que o ogro mais famoso do cinema nos ensina sobre contar histórias?
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Eu amo Shrek.
Uma das minhas memórias mais caras de infância é, aos sete anos de idade, ter ido ao cinema com a minha mãe para assistir uma história engraçada sobre um ogro verde e feioso que, na época, era dublado pelo Bussunda. A memória é tão vívida que consigo sentir o gostinho da pipoca doce, o friozinho da sala de cinema e a sensação mágica das luzes se apagando e uma nova história se abrindo diante de mim.
Desnecessário dizer que, depois disso, assisti a todos os filmes da franquia no cinema e que revi cada um deles milhares de vezes pelos DVDs, que ganhei de presente num box bonitão. Depois, com a chegada dos streamings, o primeiro filme que procuro quando assino um novo serviço é Shrek. Ah, e a regra é clara: se Shrek está passando na televisão aberta, em qualquer horário do dia, é pausa na certa.
Mas hoje não vim falar sobre a minha obsessão por Shrek, apesar de esse ser um assunto que muito me interessa.
Hoje, quero falar sobre como Shrek me apresentou a um conceito que influenciou diretamente a minha forma de fazer literatura.
No entanto, antes vamos falar sobre
A premissa
Caso você nunca tenha ouvido falar sobre a franquia, lançada no Brasil em 2001 pela DreamWorks Animation, pare tudo e maratone os filmes agora. Caso você já conheça, nunca é demais relembrar.
Shrek conta a história de um ogro feioso, verde e mal-humorado que só quer uma coisa: paz. Além de chafurdar na lama de seu pântano, assustar aldeões e se esticar na própria poltrona, o ogro não tem muitos objetivos na vida. Mas tudo isso muda quando o pântano de Shrek é invadido por soldados fazendo uma triagem caótica de criaturas mágicas. Para reaver seu querido pântano, Shrek faz um acordo com Lorde Farquaad: resgatar a princesa de uma torre e trazê-la de volta para o nobre. Tudo isso, é claro, com um humor ácido e uma trilha sonora incrível.
É uma premissa simples, certo? Algo que você, com razão, pode dizer que já foi feito um milhão de vezes. É verdade, mas ninguém fez como Shrek. Aliás, é exatamente aí que eu queria chegar.
Shrek é relembrado constantemente o quão asqueroso ele é. Nos contos de fadas, os ogros são sempre os vilões, as criaturas a serem derrotadas para os príncipes e as princesas viverem felizes para sempre. A lógica, construída por séculos em nossa cabeça, é exatamente essa: aquilo que é belo merece atenção e elogios, enquanto a feiura, quanto antes for relegada ao esquecimento, melhor.
Quando o ogro se apaixona pela princesa, e ela por ele, existe uma subversão da lógica cimentada por todos os cânones que há muito tempo deixamos de questionar. É algo que nos faz dizer, para nós mesmos, meio aturdidos com a mudança de rota: espera aí, não era para isso ser assim.
Não é um juízo de valor, o eterno embate subjetivo entre bom versus ruim que permeia cada opinião, mas uma surpresa.
Você presencia algo que foge do usual e que, num primeiro momento, você não sabe dizer se gosta ou não, apesar de reconhecer de onde vem a base para a mudança. O príncipe que salva a princesa precisa ser bonito, a princesa precisa ser delicada, e quando a fuga do padrão se apresenta, depois do estranhamento inicial nos sentimos capturados. E isso, Shrek faz com maestria.
Se você já teve essa sensação em qualquer outro filme ou livro, mas nunca soube dar um nome para ela, seja bem-vindo ao conceito de Surpresa Familar.
O que diabos é "Surpresa Familiar"?
Se eu disser que sei quem me apresentou esse conceito, vou estar mentindo. Deve ter sido em alguma disciplina da faculdade de Publicidade ou Design, numa palestra no YouTube ou num livro sobre processo criativo. Mas o que importa, de verdade, é a definição dele.
As Surpresas Familiares podem acontecer em qualquer obra artística e são bem simples de entender porque se baseiam na psicologia humana.
Nós, seres humanos odiamos tudo o que completamente é novo. A história da arte, muitas vezes, nos mostra isso. A música, então, nem se fala. Quando novos pintores surgem, rompendo com o modo de fazer estabelecido, a crítica cai em cima. O novo jeito de fazer é feio, incompreensível, selvageria pura. Na transição da música clássica para a música romântica, os compositores do movimento romântico, como Chopin, foram acusados de serem bêbados que faziam música para botequins.
A lição é clara: fazer algo completamente novo, sem ligação nenhuma com o que vem antes, é arriscado. Se você curte essa pegada de originalidade a todo custo e dane-se o público, vá em frente. Mas as Surpresas Familiares vêm para mostrar que o novo também pode ser criado a partir daquilo que as pessoas já amam e já conhecem.
Resumindo, as Surpresas Familiares acontecem quando você pega algo estabelecido no seu gênero ou área e dá um twist tão, mas tão diferente, que a galera fica presa numa espécie de "peraí..." delicioso.
Se ainda ficou abstrato, dou exemplos. Star Wars, uma das franquias de filmes mais famosas do mundo, lançada ali no final dos anos 1970, é genial. Efeitos especiais, uma história envolvente do início ao fim. Mas também nada mais é do que um filme de faroeste, um dos gêneros queridinhos da época, que se passa no espaço.
Conseguimos nos relacionar com aquilo que nos traz familiaridade. E quando essa familiaridade tem alguma surpresa interessante no meio da narrativa — ou mais de uma —, fica ainda melhor.
Como Shrek usa esse recurso?
Voltamos ao ogro mais querido do cinema.
Agora que você entendeu o conceito, tente assistir — ou reassistir — Shrek 2, a sequência em que Shrek vai visitar os sogros, pais de Fiona e reis de Tão, Tão Distante, pela primeira vez, e tente perceber as Surpresas Familiares, aquela referência que faz você dar uma risadinha e dizer: essa eu peguei.
Só para começar, Shrek 2 mostra Tão, Tão Distante como uma espécie de Hollywood onde as princesas Cinderela, Branca de Neve, Aurora e tantas outras são as estrelas de cinema. Marcas fazem aparições, como uma Starbucks medieval, isso sem contar a referência direta a Frankenstein, de Mary Shelley.
E como temos essas referências — a familiaridade —, ficamos surpresos ao vê-las em outras roupagens. Numa das noites, Shrek dorme no quarto que Fiona, antes de ser trancafiada numa torre, ainda adolescente, ocupava. No teto, há um pôster com um jovem loiro bonitão, que se parece muito com um astro pop que conhecemos, escrito "Sir Justin" numa tipografia gótica. Boom, Surpresa Familiar posicionada com sucesso.
As Surpresas Familiares são como easter eggs, mas vão além disso. Elas são uma forma nova de se aproximar da sua arte, de se relacionar com quem lê, ouve ou assiste você. É quase como afirmar para a sua comunidade que vocês falam a mesma língua, mas que sempre tem algo novo na próxima esquina.
Além de trazer frescor para a sua produção, as Surpresas Familiares são fáceis de usar. Aliás, podemos até pensar em uma fórmula simples que admita variações:
É tipo X, mas com Y...
Depois é só sair aplicando, com as devidas modificações:
É tipo um conto de fadas, mas o ogro é o herói e o Pinóquio usa tanguinha.
É tipo Orgulho e Preconceito, mas com zumbis.
É tipo Hamlet, mas com leões na savana africana.
É tipo Zorro e Gato de Botas, mas numa comédia romântica (autopromoção safada do meu próximo livro, me perdoem)
É tipo Mozart, mas com jeito de jazz.
As Surpresas Familiares podem ser a sua maior aliada para trazer frescor a qualquer tipo de arte. Se você não acredita em mim, faça o teste.
3 dicas práticas para aplicar o conceito
Pense no que já foi feito e dê um twist
Comece com o que já existe e crie a partir daí. Para gerar a sensação de Surpresa Familiar, é impossível se basear em algo completamente novo.
A ideia não é ser 100% original e disruptivo, mas olhar para algo já estabelecido e se perguntar: "ei, como isso aqui pode ser diferente?"
E depois, colocar a mão na massa.
Não mude tudo ao mesmo tempo!
Mudanças são uma parte fundamental do conceito, mas a familiaridade também.
Cada surpresa que você traz precisa ter uma boa razão para existir, por isso, pense com carinho nas modificações. O todo precisa ser coerente para a Surpresa Familiar existir como deve.
Tenha muitas referências
Como diziam os meus professores do curso de Design, referência nunca é demais.
Conheça como ninguém o que você quer usar como base, mas não tenha medo de se aventurar por outras referências que, a princípio, não tenham nada a ver com o seu ponto inicial.
A criatividade viaja por estradas estranhas, e cruzar referências é sempre uma oportunidade para encontrá-la por aí.
Até a próxima! ✨