Meu processo em: A carta de Laura
Uma olhada em como foi escrever o meu primeiro conto em italiano
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Eu sou uma escritora metódica. E tudo tem a ver com um monge italiano.
Ali por volta do ano 500, São Benedito, padroeiro da Europa, criou uma série de regras pra facilitar a vida dos monges que viviam confinados nas abadias. Os Beneditinos, como eram chamados, seguiam esse livro à risca. Nas Regras, temos mais de 70 capítulos que versam sobre tudo, desde a escolha do abade — o religioso que comanda o mosteiro —, até sobre como deveriam ser os claustros e a relação dos monges com o mundo.
No entanto, a principal regra, talvez a mais famosa, tenha sido essa: ora et labora. Que em bom e velho português significa: orar e trabalhar.
Mas por que comecei esse artigo sobre processo criativo falando sobre um monge italiano que já virou pó, com um livrinho de regras que era seguido à risca?
Porque ao longo de mais de uma década, experimentei — e ainda experimento — com o meu processo. Mas, neste ponto da minha vida de escritora, ele é mais ou menos sedimentado. Como as Regras de São Benedito, que são utilizadas até hoje por alguns mosteiros ao redor do mundo.
Conforme o tempo passa, muita coisa vai embora, mas muita coisa permanece.
Como eu disse, sou uma escritora metódica, mas também sou realista. Meu processo muda? Claro que sim, mas são detalhes. Um ajustezinho aqui, um jeitinho de experimentar ali. Nada gigantesco. A lógica é sempre a mesma, simples e constante como a famosa frase de São Benedito: orar e trabalhar.
Meu processo, resumidamente, é esse:
Ter a ideia
Planejar
Escrever
Reescrever
Revisar
Repetir
Mas esse conto, por ser escrito em outra língua, deu uma balançada nas minhas estruturas.
Iniciei o curso de italiano — formalmente, com um professor e colegas — no semestre passado, apesar de já ter contato com a língua de forma autônoma há quase dois anos. Meu nível, no momento em que escrevo este artigo, é B1, algo como um intermediário-meio-iniciante no quadro europeu.
Dito isso, A carta de Laura nasceu como uma resposta a uma atividade de aula. A tarefa era simples: escrever uma carta — ou email — a um amigo ou familiar sobre um novo trabalho. E quando vi a oportunidade, não deixei passar.
A ideia foi fulminante: eu via uma professora de italiano com um bico de babá em outro país, escrevendo uma carta para a irmã sobre como a família que a recebia, alemã e super tradicional, era um pouco… esquisita. Depois disso, ideia foi puxando ideia.
Vamos ao texto traduzido para o português e, depois, às dificuldades em escrever em outro idioma.
A carta de Laura
23 de junho, 2024
Oi, irmãzinha! Cheguei na França na última semana, e escrevo essa carta — uma carta, como fazia o nosso avô nos anos 50! —, porque acredito que coisas estranhas estão acontecendo no meu novo trabalho.
Sabe, aceitei esse bico de babá porque preciso de dinheiro. Na falta de oportunidades como professora de italiano, fiz de tudo um pouco: trabalhei como secretária naquela empresa de papéis e também como vendedora naquela loja de roupas durante o verão. Você pode imaginar a minha felicidade quando, lendo anúncios na hora do almoço, encontrei esse trabalho de babá na França, com tudo incluso e um salário semanal. É um sonho. Posso praticar meu francês e, ainda por cima, ganhar dinheiro, mas como eu disse, as coisas estão estranhas.
Agora trabalho para a família Sherman. Eles têm dois filhos gêmeos, um garotinho e uma garotinha que são iguais àquelas crianças das publicidades antigas, sabe? Os Sherman são alemães, ricos e, até agora, foram gentis. Seria o Paraíso de Dante, mas tem um probleminha: parece que eles vivem nos anos 40. Juro. Sei que parece besteira, mas é assim. Enfim, é por isso que escrevo uma carta e não um email ou uma mensagem, como qualquer pessoa do século 21 faria: não tem um sinal de internet por aqui, por mais fraco que seja. Mas diga, o que anda acontecendo no mundo?
De qualquer forma, os Sherman vivem mais ou menos perto de Paris, nos arredores. Não sei explicar, mas é uma casa sofisticada, entre bosques que parecem saídos de filmes antigos. Tem até um rio entre as árvores, para você ter uma ideia.
Os Sherman são gentis, mas distantes. Vai ver é porque são alemães, mas não sei. Acredite em mim, Ines, essas crianças estudam o dia inteiro: piano com a mãe, alemão com o pai e italiano comigo. São muito educados, mas me parecem tristes. Não existe alegria nessa casa, nenhum riso de criança nos corredores. Ah, e tem outro problema: acho que Franz, o menino, me odeia. Bertha, a menina, me parece amigável e interessada em aprender um pouco de italiano. Veremos.
No final do dia, o senhor Sherman lê a bíblia em alemão, em voz alta. A senhora Sherman faz crochê, e as crianças, sentadas no chão, escutam em silêncio. Não brincam, não falam.
É uma vida pacata, apesar de um pouco inquietante, mas... bem. Mamãe sempre disse que era eu meio mão de vaca e, talvez, ela tenha razão! Fico pelo dinheiro e, também, pelas crianças. Vamos ver o que acontece. Mas e você? E mamãe? O que vocês andam fazendo? Me conte. Como sempre, sinto sua falta!
Sua irmã,
Laura
26 de junho, 2024 — escrito na mesma carta
Vou embora, Ines, e minhas mãos tremem enquanto escrevo isso. São quase meia noite, e não consigo pensar em dormir. Hoje à noite, depois de o senhor Sherman ter lido a bíblia, subi as escadas para colocar as crianças na cama. Assim que Franz adormeceu, Bertha me abraçou com força e me sussurrou no ouvido, em italiano: fuja enquanto pode, fraülein Mossini... a outra babá não teve tanta sorte. Encarei a menina, mas não parecia uma brincadeira. Ainda tremendo, beijei a testa dela e fui embora.
Chamarei a polícia e pegarei um trem para Milão, mesmo que eu precise esperar a noite toda na estação para ir embora. Vou deixar essa carta no correio assim que der. Ligo para você em breve.
Laura.
Considerações…
Ok, agora é a parte em que eu choro em posição fetal e digo como foi difícil escrever em italiano, como ainda preciso de muito mais vocabulário pra deixar o texto minimamente satisfatório, como preciso estudar outros tempos verbais e mais um milhão de coisas que não chegam aos pés do que foi, realmente, o mais difícil.
Meu maior desafio, nesse conto, foi a tradução.
Antes, um disclaimer: não tenho formação alguma em tradução. Dito isso, dá pra imaginar o meu desespero quando percebi que, se eu quisesse mesmo trazer o texto pra cá — e eu queria —, teria de traduzi-lo.
Enquanto eu fazia a versão em português, fui percebendo como o texto perdia o molho que tinha inicialmente em italiano, mesmo com os erros básicos que uma estudante intermediária pode cometer.
Primeiro: se escrevo em português, prefiro que meus personagens sejam brasileiros. Escrever personagens gringos falando português é algo que fiz muito quando comecei minha jornada na escrita, mas que hoje me incomoda bastante. Descobri que a mesma regra se aplica quando escrevo em italiano.
Ver Laura, uma professora natural de Milão, falando e pensando em português foi uma experiência estranha, meio deslocada. Quase como se tudo aquilo fosse falso. Se eu tivesse intimidade com o ato de traduzir, o texto ficaria melhor? Pode ser que sim. Mas mesmo com todos os erros e com a escrita básica, ainda prefiro a versão original.
Escrever também é pensar com a língua, convidá-la para uma dança. Dessa vez, pisei nos pés do italiano e deixei o português confuso com os meus próximos passos. Ainda bem que a gente vai ter outras festas pela frente.
Dito isso, termino esse behind the scenes com ainda mais respeito e admiração pelos meus amigos tradutores.
Esse artigo foi gratuito, mas os próximos não serão, viu? 👀
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Até a próxima ✍🏻
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Eita que eu amei esse cafezinho "surpresa"! Realmente, o pensar uma história em um idioma e contexto é uma coisinha meio ingrata! Parece que fica tudo meio pálido quando a gente tenta mudar o idioma. No final talvez aquela anedota clichê que "saudade não é a mesma coisa em todo idioma" é bem mais real e ampla do que a gente imagina... agora pergunta: como que eu sei que meu cafezinho Premium deu certo? Já tô ansiosa ksksksksksk