Mais do que amados, queremos ser compreendidos
Uma reflexão sobre a incompreensão das almas-irmãs
Desde a adolescência, soube que algo estava errado comigo, e nada dessa certeza tinha a ver com os descompassos de um período tão cheio de mudanças. Foi na adolescência, talvez pela primeira vez na minha vida, que percebi o quão difícil seria me conectar com os outros.
Me explico: mesmo apaixonada pelos livros, não fui uma adolescente silenciosa ou solitária. Sempre estive cercada de amigos, e fora algumas questões com o meu corpo, não fiz parte do arquétipo de menina desastrada que não sabe como falar com os outros. Comunicação nunca foi um problema.
No entanto, mesmo falante e opinativa como o diabo — certas coisas realmente não mudam —, eu observava. E quando olhava em volta, tinha a sensação de ter sido recortada de outro lugar e colada de forma grosseira no cenário. Eu gostava de muitas pessoas, mas não tinha afinidade com ninguém.
Então, com dezesseis anos, li pela primeira vez o poema Sozinho, de Edgar Allan Poe, ou Alone, no título original. A tradução abaixo é de Paulo Vizioli. Se você nunca leu, agora é a hora:
Da hora da infância, eu nunca pude ser Como outros eram, – nunca pude ver Como outros viam, – sentimento algum Pude extrair de manancial comum. Nas mesmas fontes eu não fui buscar A minha dor; não pude despertar Meu gozo com os tons de meu vizinho; E tudo o que eu amei, amei sozinho. Então, – na minha infância, – foi tirado, Na aurora de um viver atormentado, Dos abismos de todo mal e bem, O mistério que ainda me retém: Da torrente e da fonte, Do penhasco vermelho do monte, E do sol, a rolar a meu lado Com as tintas do outono dourado… Do corisco na altura sem fim, Que voando passava por mim… Da tormenta, da voz do trovão, E da nuvem, criando a ilusão (Lá no meio do azul a brilhar) De um demônio em meu olhar.
Tudo o que amei, amei sozinha. A literatura, de novo, me confortava.
O primeiro pensamento da Rachel de dezesseis anos foi de alívio ao ver que era normal as pessoas não se interessarem pelas mesmas coisas que ela. Num lampejo de lucidez estoica para alguém tão jovem, pensei: vai ser assim até o final da minha vida. E aceitei.
Me formei na primeira graduação — Design —, me formei na segunda — Publicidade, porque como eu disse, comunicação nunca foi um problema — e o sentimento persistiu. O verso de Poe voltava como uma máxima quando a discrepância ficava mais aguçada. Fosse com colegas de trabalho, familiares, amigos ou mesmo nos relacionamentos amorosos, eu pensava: tudo o que amei, amei sozinha. Vida que segue.
Como uma mulher heterossexual na faixa dos 30 anos, tive minha cota de relacionamentos amorosos. E em todos eles, sem exceção, eu era incompreendida em maior ou menor grau. Os homens com quem saí nunca entenderam por que eu gostava tanto de estudar, por que fiz um curso de História da Arte se isso nada tinha a ver com a minha profissão, por que nunca tive vontade de aprender a dirigir ou por que eu preferia livros que me deixavam triste ao invés dos que me fariam felizes.
Muitos deles me disseram, com todas as letras, que não me entendiam. Eu ria, e com o carisma de quem cursou duas faculdades na área da comunicação, desconversava e respondia que era assim mesmo, que a ambiguidade mantinha o mistério vivo.
Mas incompreensão, como tudo na vida, cansa. E quem me ensinou isso foi Antonin-Dalmace Sertillanges, filósofo e teólogo francês nascido na segunda metade do século XIX.
Seguidor da linha tomista, sistema filosófico e teológico criado por São Tomás de Aquino, que aceitava o uso da razão para falar e especular sobre a fé, Sertillanges foi professor de ética no Instituto Católico de Paris e em sua obra mais famosa, A vida intelectual1, publicada em 1921, criou um guia para quem busca seguir uma vocação intelectual ou pelo menos se iniciar em seus mistérios.
Enquanto Sertillanges dá dicas, ao melhor estilo garota do blog, sobre como cultivar uma vida de estudos, ele também fala sobre relacionamentos. Mais especificamente, sobre casamentos e sobre o perfil da esposa do intelectual.
Eu, como uma mulher que ama ler filosofia e os clássicos da literatura, sempre tenho um frio na espinha quando esse assunto entra na roda. É sabido que os autores antigos — e alguns dos modernos — não são lá muito amigos das mulheres. Mas com Sertillanges, apesar de alguns pesares, tive uma grata surpresa.
Depois de indicar o perfil ideal da esposa do intelectual, que deve se casar também com a vocação do marido e compreender suas dores e delícias, Sertillanges dá duas canetadas maravilhosas. A primeira, que achei ousada para a época:
Tendo esposado uma vocação, que tenha ela [a esposa] também a vocação. Realizar pessoalmente ou por meio de seu marido, que importância tem isso?
(p. 54)
E essa aqui, que fundamentou o presente artigo e as reflexões que venho tendo:
As tensões ocasionadas pela incompreensão da alma-irmã são fatais à produção.
(p. 53)
Para Sertillanges, não existe nada pior do que a incompreensão de quem nos cerca. E ele vai além: se o intelectual escolhe se relacionar — ou até mesmo se casar — com pessoas que não o compreendem, corre o risco de contribuir para a desunião, para o desmantelamento de sua vocação.
Sertillanges afirma que a vocação nasce de um amor profundo. Logo, quando escolhemos nos cercar de pessoas que não nos entendem, que não aceitam a nossa natureza, isso mina aquilo que mais amamos em nós mesmos.
Confesso que achei pesado.
A grande verdade é que ninguém é obrigado a gostar das mesmas bizarrices que a gente. Nunca vamos nos relacionar com pessoas 100% iguais a nós, com alguém que compreenda todas as nossas idiossincrasias, mas cheguei a um ponto da vida em que não quero estar ao redor de pessoas que não me entendem em absoluto.
Não quero a incompreensão da alma-irmã, seja ela a de um amigo ou a de um futuro marido. O sentimento de inadequação que nasce disso é pesado demais para suportar.
Poe que me perdoe, mas estou cansada de amar sozinha.
Para terminar, retorno à literatura. No romance 19842, publicado quase três décadas depois da obra de Sertillanges, George Orwell escreveu:
Talvez fosse mais importante ser compreendido que amado.
(p. 296)
E não é que ele estava certo?
Até a próxima! ✨
Leia mais
SERTILLANGES, A. D.. A vida intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos. São Paulo: Edipro, 2023. 224 p. Tradução: Edison Bini.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 416 p. Tradução: Alexandre Hubner, Heloisa Jahn.